segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Um Shabbat em Jerusalém

O plano era ir ao Kotel HaMaaravi (literalmente o Muro Oeste, em português conhecido como Muro das Lamentações) na entrada do Shabbat (o sábado começa no entardecer, visto que o calendário é lunar-solar), encontrar o minian (grupo de dez ou mais judeus, necessário para a reza coletiva) do rabino Machles e após o termino caminhar com ele até sua casa.

Chegamos em Jerusalém um pouco atrasados, mas antes do shabbat. De tarde o sol se põe no Mediterrâneo, e como Tel Aviv está a oeste de Jerusalém, o sol não nos ofuscou. Estacionamos o carro no centro da cidade já prevendo a caminhada de volta. A circulação de veículos é proibida durante os dias de festividades religiosas, incluindo o Shabbat, em bairros religiosos. Pegamos um táxi que nos levou até o muro das lamentações. O taxista optou pelo caminho externo que nos deixa na parte mais próxima ao muro. A primeira visão que tive foi da cúpula da mesquita Al-aqsa, seguida pela mesquita de Omar. 

Entramos e já pudemos sentir o clima de confraternização. Quem nunca passou uma entrada de Shabbat em Jerusalém, especialmente no Muro das Lamentações, se impressiona com a movimentação e o clima. Grupos enormes de pessoas cantavam em rodas, soldados portando armas corriam para se juntar aos grupos já formados, estrangeiros vestindo kipot (kipá é o típico chapéu que os judeus usam em locais religiosos, kipot é seu plural) coloridas para facilitar a identificação no meio de tanta gente seguiam seus guias, rabinos subiam em cadeiras e iniciavam as rezas aos berros, haredim (judeus religiosos da tradição europeia) iam e vinham. Tudo num frenesi incontrolável.

Além do caminho externo, mais próximo à muralha de proteção da Cidade Velha e que se aproxima do Muro pela direita, há também o caminho interno, que se aproxima do Muro pela esquerda. Há uma espécie de esplanada antes de chegarmos ao Muro propriamente dito. Ela é dividida na parte superior, mais distante, e que funciona como uma espécie de ante-sala, e inferior que é mais próxima. 

A parte inferior é frequentada pelas mulheres à direita e pelos homens à esquerda. É nesta parte que há uma entrada para uma sinagoga construída sob a fundação de construções. Tanto dentro da sinagoga como fora diversos grupos rezam em descompasso entre si, mas em uníssono se tomados individualmente. A sinagoga não é muito espaçosa, mas o ar-condicionado ameniza tudo e parece acalmar os ânimos até certo ponto.

Há no judaísmo europeu a tradição chamada de Hasidut (lê-se rá-ci-dut), formada no século XVIII como um movimento de reflorescimento espiritual iniciado no que atualmente é o leste da Ucrânia. O movimento se espalhou pelo leste europeu e acabou dando origem a diversos grupos menores com tradições particulares.

A chasidut que vemos no Brasil é a Chabad, uma das mais conhecidas mundialmente, justamente por ter um caráter inclusivo. Os demais grupos são mais fechados para contato externo. Além de pensamentos que se diferenciam em menor ou maior grau, cada chasidut tem vestimentas típicas. 

Algumas usam chapéus cilíndricos feitos de peles de animais, outras usam uma espécie de sobretudo de cores variadas. Alguns com listras brancas, tons de cinza, amarelo ou dourado com listras pretas. As meias podem ser vestidas por cima das calças, lembrando personagens das cortes europeias de outrora. 

Dentro da sinagoga não somente as rezas captavam nossa atenção, mas esse desfile de vestimentas variadas. O que achei mais curioso foram as vestimentas de um judeu etíope. A tradição deles faz uso de um manto branco por cima das roupas casuais. Ele estava enrolado em sua túnica e diversas dobras se formavam ao redor do corpo. De vez em quando ele levantava os braços para reforçar alguma parte da reza. 

Voltei ao pátio principal e continuei observando a movimentação dos diversos grupos: franceses, latinos, americanos dentre diversos outros. A variedade é enorme. 

A hora avançava e não avistávamos o rabino, com o lugar se esvaziando, resolvemos andar até a casa dele. 

O clima em Jerusalém é mais ameno de noite e bem mais fresco em comparação ao lugar em que moro. É a diferença entre um lugar seco e mais alto e outro mais próximo ao mar.  

No caminho cruzamos a principal rua do bairro chamado Mea Shearim. Este bairro é possivelmente o mais religioso de toda Israel. O lugar é uma viagem no tempo. Vimos todos os tipos de religiosos, várias mães andando com filhos ainda em carrinhos. Muitas cenas chamaram minha atenção: a conversa entre dois jovens adultos na qual um deles mostrava ao outro uma garrafa de vodka ou então três senhores mais velhos falando em voz baixa, lembrando muito um encontro de cunho político. Tudo falado em Yiddish, esqueçam que esta é uma língua morta. Seu número de falantes cresce.

Os letreiros também me chamaram a atenção, lojas de utensílios religiosos, livrarias, yeshivot (escolas de estudo religioso), midrashot (instituto de estudos religiosos para mulheres) e uma faixa exposta numa casa: "Só há felicidade sem internet".

Tudo me captava, eu fiz alguns desvios, mas quando estávamos mais próximos, não estávamos seguros da direção que deveríamos seguir. Paramos um homem na rua para pedir auxílio, ele foi tão solícito que nos acompanhou praticamente à casa do rabino, desviando-se de seu percurso. 

Procuramos um pouco mais até que avistamos um grupo grande de pessoas esperando à porta. Não ficamos muito tempo em pé e em menos de 5 minutos o rabino nos recebeu, um a um, cumprimentando todos. O rabino é ortodoxo, mas diferentemente do que poderíamos esperar, ele não usa barba. Americano, tem um sotaque bem forte falando hebraico. 

A sala da casa comportaria um jantar de famíia com até vinte pessoas, mas o rabino recebeu entre oitenta e noventa convidados na noite de shabbat. É incrível a quantidade de gente que havia. A sala inteira era circundada por estantes e livros, quatro aparelhos de ar-condicionado mantinham o clima agradabilíssimo. Por coincidência sentamos na mesa do rabino. 

Diversos tipos bem distintos de pessoas estavam ali. Consegui identificar alguns e aqui entram suposições. Migrantes que chegaram em Israel há pouco tempo, turistas de diversos lugares, pessoas que tem uma condição econômica menos privilegiada, religiosos ou não, jovens religiosos curiosos, amigos do rabino. Um turbilhão de pessoas.

O jantar começou com as boas-vindas do anfitrião, cantamos as músicas tradicionais de Shabbat. Logo depois foi a vez do kidush, a prece do vinho e em seguida fizemos a netilat yadaim (limpeza ritual das mãos). De uma maneira geral isto é feito numa pia, mas como era tanta gente, passaram bacias com os instrumentos dentro para que lavássemos as mãos lá mesmo. Após a limpeza das mãos o rabino recitou a reza do pão. Nunca vi chalot (o pão especial de shabbat se chama chalá - rá-lá, plural chalot)  tão grandes. Faz sentido que fossem deste tamanho, visto a quantidade de gente. Mesmo assim foram usadas quatro, sendo duas delas integrais.

Logo depois começaram a vir os pratos. De entrada tivemos salada, humus, tahine, logo depois gefilte fish. O segundo prato foi a sopa, que eu não consegui pegar. Neste momento, sentado em nossa mesa estava um senhor do Iêmen, que insistiu que eu ainda não havia recebido sopa. O rabino pediu para a cozinha, mas a sopa havia acabado.

Durante cada prato o rabino fazia o que se chama de "divrei torá", ou seja, falava sobre o trecho da torá (antigo testamento) lido na semana em questão. As comidas continuavam a chegar enquanto ele falava.

Quando chegou o prato principal, frango, ele pediu que lhe passassem o prato. Eu pensei que ele quisesse fazer chegar ao lado mais extremo da sala, que era disposta em L, e que havia recebido tudo por último, mas o que ele queria na verdade era me servir como primeiro convidado, tendo em vista que eu não tinha recebido a sopa. Fiquei muito agradecido com esta atitude.

Chegou kigel, uma espécie de bolo salgado de macarrão. O rabino então convidou os participantes a contarem algo que eles conhecessem, relacionado ou não a religião, mas foi claro ao pedir que se evitasse falar de política. 

Várias pessoas levantaram para falar algumas palavras, inclusive uma turista da China, professora de artes. O rabino em algumas vezes complementou, em outras amenizou, mas conseguiu manter a ordem do jantar.

Serviram-nos melancias e a reza que se faz após a refeição foi realizada. O rabino se despediu. Fiz questão de agradecê-lo com um aperto de mão. Essa iniciativa toda é muito interessante.

Voltamos caminhando pela cidade, depois de meia-noite, as ruas estavam cheias de religiosos desfrutando o dia do descanso. 

Gostei tanto de ver isso que quero voltar num dia de semana para poder comparar e também para tirar fotos de tudo que acontece nas ruas. Dizem que nas festividades é muito legal passar pelas ruas do bairro. Outra coisa que me deu vontade foi aprender Yiddish, mas uma coisa de cada vez.