terça-feira, 8 de março de 2016

O último dia

Nosso último dia completo foi dia 10. Escutei uns cânticos e pensei que havia gente no centro espiritual. Achei estranho porque embora o som chegasse bem baixo, pela distância eles deveriam estar cantando muito alto. Levantei-me. Fui olhar o dia e tentar identificar a origem do som. Finalmente me dei conta de que a música vinha do celular de um índio.

Bastou isto para me lembrar que uma das pessoas tinha resolvido "fazer" kambo, ou seja, ser objeto da aplicação do veneno de sapo. O que se acredita é que o veneno deixa a pessoa alinhada, ela passa a acordar cedo, fica mais concentrada, dentre outros benefícios.

A aplicação se dá da seguinte maneira. Alguns pontos, três para as mulheres e cinco para os homens, são queimados com uma vareta em brasa. Qualquer lugar do corpo serve, mas vi marcas em braços e em tornozelos. Depois de formadas as bolhas das queimaduras, a pele é arrancada e com uma outra vareta o veneno é passado nos buracos das feriadas recém abertas.

A reação imediata em grande parte das pessoas é o vômito e tontura. A pessoa que recebe o tratamento fica entre 1 e 2 horas reagindo ao veneno. Também precisa descansar e resguardar-se do sol por 5 horas.

Como a maior parte do grupo, não achei isto uma boa ideia. Sobretudo sem saber que tipos de reação eu poderia ter ao veneno, e neste caso, sem acesso a nenhum hospital. Achei prudente não arriscar.

Voltei a deitar para descansar. Depois de levantar novamente, vi algumas pessoas pela proximidade pegando cupuaçu. A fruta tem a mesma lógica da fruta do conde, a polpa envolvendo os caroços.

Tomei meu café e fui ao centro espiritual para ver se conseguia acompanhar o feitio do uni. Também havia combinado com um dos índios que ensinaria algo de violão para ele e sabia que o encontraria fazendo a bebida. Não consegui ficar lá mais do que dez minutos, os mosquitos estavam inclementes. Voltei para o nosso local de hospedagem.

Fiquei mais um pouco na rede descansando até que na metade da manhã fomos à casa da árvore. Essa casa é o sono de toda criança. Uma casa na árvore funcional, e mais, a árvore ficava dentro de uma espécie de lago.

A subida era por uma rampa e a casa tinha três cômodos. Logo que entrávamos chegávamos ao que podemos considerar uma sala. A casa tinha formato de círculo, mas a divisão fazia com que cada cômodo tivesse um formato de seção de um círculo. A sala, que era onde chegávamos assim que subíamos a rampa tinha a forma de lua minguante, mas sem ter pontas finas.

A extensão da sala se transformava numa varanda descoberta, com parapeito de madeira. A seção que completaria o círculo era fechada, uma espécie de quarto com porta. 

Ficamos pela árvore tocando violão, cantando. No meio disto uma das meninas experimentou uma folha nos olhos. O resultado foi lacrimejar bastante. Pouco tempo depois passamos rapé. O rapé é feito de tabaco e cinzas da casca de uma árvore específica.

Há duas maneiras de utilizar o rapé. Alguém te ajudando ou a própria pessoa se aplicando. O rapé precisa ser inalado, então para a auto-aplicação utilizando um objeto tubular em formato de v. Uma das partes é posta na narina e a outra na boca. Um sopro e o rapé entra na narina.

Para utilizar o aplicador grande é necessária a ajuda de alguém. A instrução que recebi é que após soprarem o rapé em seu nariz, a pessoa que recebia a aplicação deveria respirar tranquilamente. Como sempre, a teoria é bem fácil.

A sensação imediata que tive ao receber a aplicação foi ardência. No meu caso espirrei e lacrimejei bastante e um pouco veio para a garganta, o que se espera que não aconteça.

Pouco tempo depois destas sensações iniciais senti uma pequena queda de pressão e tive as sensações de tonteira, relaxamento e menor sensibilidade nas pontas dos dedos. O efeito durou pouco e não tive alteração de consciência.

Cantamos mais e eu até acompanhei os cânticos tocando violão. Começou a chover, esperamos um pouco e fomos almoçar. 

Depois do almoço fomos ver o artesanato feito na aldeia. As peças eram lindíssimas, cores bem fortes, contrastes bem interessantes. Gostei bastante do que vi. Na sala um documentário era exibido num computador, sobre o povo Yawanawá.

Aproveitamos a proximidade da ducha coletiva e tomamos banho por lá mesmo. Como havíamos almoçado mais tarde, a janta também se deslocou. 

De noite participamos novamente do ritual religioso. Nem todos participaram da cerimônia nesta noite e eu que lá estive, decidi não tomar o uni. Hoje estava descansado, sem câmeras para filmar o ritual, queria viver a experiência como parte e não como observador.

A noite foi simplesmente incrível. Tal qual a outra, começou com a oferta da bebida aos que quisessem tomá-la, logo depois tivemos os cânticos. Inicialmente em roda, o que invertia o que assistíramos da última vez. Outra inversão foi o si-pã, que apareceu um pouco mais tarde.

Após a roda, instrumentos foram adicionados ao culto. A formação foi com os instrumentos sendo tocados por quem estava sentado em cadeiras. Já conhecendo as músicas, cantei diversas, até que em determinado momento fui chamado para compor o coro entoando os cânticos.

Essa noite foi muito legal. A oportunidade de cantar foi incrível. Como da última vez, já numa parte mais avançada da cerimônia chegou o Matsini. Como pajé ele tem posição de destaque, recebeu um violão e sentou numa cadeira destacada dos demais. Iniciou diversos cânticos, algumas que ainda não conhecíamos. 

Muitos novos cânticos foram entoados. Em determinado momento ele sinalizou que a cerimônia estava por terminar visto que viajaríamos bem cedo no dia seguinte.

Com o fim próximo, um novo si-pã foi trazido para o braseiro e teve início um ritual de proteção. Sentamo-nos todos os viajantes em meia lua, ao redor do braseiro. Os dois pajés, o mais novo e o Matsini se abaixavam para capturar a fumaça, ou alguma energia, e a transferia para as mãos e das mãos para os viajantes, no caso, nós.

A cada coleta realizada desta maneira, ele posicionava ambas as mãos em alguma parte da gente, cabeça, peito, costas, braços. A maneira de transferir era com o tradicional sopro com som gutural: uh-xxxxx. 

Esse processo foi realizado para cada um dos viajantes tanto pelo Matsini, quanto por Raçu, que é como se chamava o pajé mais novo. Ao final pudemos falar algumas palavras.

Agradeci a hospitalidade, comentei sobre como temos costumes diferentes e não somente uma distância física que nos separava. Mas frisei que tínhamos uma língua em comum e que por isso conseguíamos nos comunicar.

Comentei que agora eu podia dizer que tinha amigos na selva e por outro lado que eles soubessem que agora eles tinham amigos na cidade. Mais uma vez agradeci por terem nos recebido e me desculpei por termos quebrado a rotina deles.


Foi uma noite emocionante.

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