quarta-feira, 2 de março de 2016

Cerimônia religiosa e brincadeiras na aldeia


Pouco depois de escrever sobre o dia anterior fomos chamados para ir ao centro espiritual da aldeia. O centro ficava na direção oposta ao que já conhecíamos da aldeia. A partir do ponto de desembarque, caminhamos para onde nos hospedamos e seguimos.

O caminho não era muito longo, passamos pelo roçado, que é como chamavam a o local onde plantam banana e mandioca, depois por um brejo onde havia muitos sapos, um declive em forma de escada moldada no barro e logo encontramos um churru, a tradicional construção circular com telhado de palha.

Churru no centro espiritual.
Este ficava à beira de um igarapé, o que trazia muitos mosquitos para o local. Aguardamos um pouco sentados sob o churru, até que Matsini, o pajé mais velho, nos recebeu. Ele nos mostrou a plantação dos dois componentes da ayahuasca, ou uni, como os Yawanawás se referem à bebida sagrada. São eles o cipó e a folha. Passando por dentro do churru, a plantação ficava atrás, inclusive sua casa ficava praticamente colada ao churru.

Anoitecer.
Já escurecia enquanto o Matsini nos explicava qual era o procedimento de produção do chá, ou feitio, como o processo também é chamado. Falou da história das plantas, passando pela representatividade do cipó como macho e a folha como a fêmea.

A preparação se dava dentro do próprio churru. Tomando o local onde me sentei como sul, a fogueira grande onde o uni era preparado ficava entre o norte e o nordeste. A fogueira era ladeada por dois cavaletes de madeira, em formato de y.

A grande fogueira.
A plantação ficava a nordeste com acesso pelo leste, a casa do Matsini ficava a sudeste e entre leste e sul ficou a fogueira de brasa onde mais tarde queimou-se o incenso, si-pã. O igarapé corria paralelo à tangente que tocaria o sul, também ao sul ficava uma área aberta com um banco atrás. 

Entre sul e oeste ficavam os membros do coro, também foi lá que se dava o início das cerimônias de dança em roda. Entre oeste e noroeste ficava o acesso ao churru de quem vinha da aldeia. E a noroeste ficava a mesa onde as garrafas com uni ficavam e onde o uni era servido. Entre noroeste e norte havia uma prateleira onde os instrumentos eram guardados.

Entramos no churru, nos acomodamos e durante um bom período escutamos de Matsini diversas histórias sobre os Yawanawás e seus costumes. Conhecemos a história de gênese do mundo e de seu próprio povo. Segundo a tradição conta, houve duas criações. A primeira deu origem a diversos povos, dentre estes povos estava o homem branco. O termo utilizado para falar de povos em geral é Nawá.

A lenda segue e conta que um homem da primeira geração havia sido morto por um caçador. Dentro deste homem o caçador encontrou duas pedras do tamanho de limões. Sem saber o que eram as pedras e já conhecendo a anatomia de diversos animais, o caçador ficou surpreso e resolveu guardar as pedras numa bolsa específica de palha que os índios costumam deixar pendurada na porta.

Já em casa o caçador escuta um ruído. Disposto a descobrir de onde vinha o ruído o homem procurou por toda a casa, não encontrando nada. Sobrando apenas a bolsa para conferir, ele fica reticente tendo em vista que a pedra que a pedra é um objeto inanimado. 

Não havendo outra alternativa ele confere a bolsa assim mesmo. Para seu espanto ele encontra um belo cocar feito de queixada, o porco do mato, o mesmo que dá nome à sua tribo. O processo se repetiu até que diversos outros cocares aparecessem, cada um feito de um animal da região, cada qual representando um povo conhecido por eles. Esta é a história da segunda criação, onde aparecem os povos que encontramos atualmente na região amazônica na qual estão os Yawanawás.

Um pouco mais de conversa e o questionaram sobre a vida após a morte. Há uma crença narrando que as pessoas quando morrem realizam uma travessia por um corredor de fumaça. Cada espírito, de acordo com o estilo de vida enquanto na terra, pode habitar uma das duas opções: uma região com outros espíritos similares ou outra onde habitam as bestas, termo que ele usou para se referir a animais selvagens, normalmente ferozes. 

Um ponto que ele fez questão de frisar foi que a segunda opção não é ruim, porque para aquele tipo de espírito, habitar com as bestas é a melhor opção. É o local onde aquele tipo de espírito se sente melhor.

Falando sobre a vida após a morte ele entrou no tema saudade. Segundo a crença os espíritos podem sentir saudades dos que aqui ainda não fizeram a travessia. O remédio para isto é que há dois palhaços que fazem graça até que o espírito ria e assim esqueça das saudades dos que deixou aqui.

Recebemos mais algumas instruções e a cerimônia foi oficialmente aberta com o convite para que todos fôssemos provar uni. Antes do ritual de tomar a bebida brasas foram retiradas da fogueira principal e colocadas num local mais próximo a todas as pessoas. 

É servido o uni.
Nesta nova fogueira de brasas o incenso deles foi colocado. O si-pã, como eles chamao o incenso é feito de seivas de determindas plantas, o cheiro é aromático, bem perfumado e gostoso. O intuito do incenso é espantar maus espíritos. Parte do costume é se aproximar da fogueira e consequentemente da fumaça e trazê-la, com os braços, para si. 

Si-pã sendo coloado na fogueira.
Um a um fomos à mesa onde a bebida estava sendo servida. Antes de nos servir o pajé mais novo lançava bons augúrios através de um som gutural seguido de um sopro. Este som com sopro era utilizado em diversas ocasiões, sempre como uma forma de benção.

Tomei a dose recomendada de dois dedos. O gosto da bebida é ruim, parece uma sopa com sica. A coloração é verde lembrando um destes sucos desintoxicantes ou de clorofila. Talvez sopa fosse o nome mais apropriado, talvez até caldo.

Logo após todos terem sido servidos, nossos anfitriões se serviram e se posicionaram em duas linhas. Dispuseram alguns colchões no chão, perto da saída do churru, entre o mastro e uma das laterais. Estavam de frente para o grupo de visitantes. 

Começaram a entoar seus cânticos sagrados. No início todos cantando à capela, o pajé mais jovem começava a cantar, sendo logo seguido pelas demais índias. As músicas iniciais soaram como cheias de vogais. E embora a letra variasse, a estrutura era bem parecida. Quatro estrofes eram entoadas, as duas primeiras bem lineares, a terceira com uma alteração que acelerava o compasso, fazendo com que a última tivesse de ser prolongada para compensar a terceira e manter o conjunto de quatro compassos no tempo. O efeito sonoro é de criar um uníssono e o prático é de realinhar o ritmo para o próximo conjunto de estrofes.

Cânticos.
O coro que se formava, com diversas vozes se somando em uníssono, às vezes se sobrepondo criando harmonia com vozes, tudo isso criava um efeito incrível. O churru, com iluminação parca da grande fogueira, os cânticos ritmados em uma espécie de transe musical, tudo isto criava uma atmosfera típica de experiências que podem ser classificadas como espirituais.

Após alguns cânticos nesta formação, todos os integrantes se levantaram e começaram a cantar ao redor de brasas que já haviam sido  trazidas da fogueira principal e dispostas, para a utilização com o si-pã.

Uma nova formação foi adotada, agora os índios se deram os braços e dançavam ao redor da fogueira, passo a passo, lentamente, entoando os cânticos. Fomos chamados a participar da roda. Alguns foram e outros não. A roda durou bastante tempo. 

O pajé mais velho, Matsini, me havia contado que inicialmente eles se mostraram relutantes em adotar instrumentos. Mas segundo ele, um sonho o fez mudar da ideia. Eles adotaram os instrumentos há cerca de dois anos. Então, depois da formação linear, da formação em roda, eles voltaram a ficar alinhados, com o pajé mais novo empunhando um violão, sentado numa cadeira enquanto que as meninas ficaram sentadas em colchões ou em pé atrás dele.

Diversas canções foram tocadas por este pajé até que por fim Matsini assumiu o violão e o pajé mais novo pegou o charango, um instrumento musical muito utilizado na cultura andina. O instrumento de corda foi provavelmente adaptado para as necessidades locais a partir da chegada dos espanhóis. 

Além destes dois instrumentos de corda, também havia uma flauta marcando a melodia e tambores e chocalhos. A cantoria voltou e diversas músicas foram tocadas. Algumas tem palavras e outras são apenas mantras, chamados saiti. 

Aproveitei o céu límpido para ficar olhando para as estrelas. Morando numa cidade é bem difícil observar o céu, a iluminação próxima ofusca muito a beleza dos céus. Sorte que ali naquele local podíamos observar com perfeição o que a natureza nos proporciona quase todas as noites. Foi uma experiência incrível poder observar o céu ao som de mantras indígenas. Curiosamente a última vez que me lembrei de ter visto algo tão fascinante foi acampando no deserto. 

O uni atuou de diversas maneiras entre as pessoas que provaram. Algumas se sentiram enjoadas e tiveram alterações de visão, outras não se enjoaram, mas tiveram de vomitar. Já teve gente que precisou repetir algumas vezes a dose a fim de sentir algo.

O que senti foi um cansaço estupendo, embora passageiro. Por sorte eles tinham diversas redes dispostas ao redor do churru e me vali de uma delas para ficar quieto por um tempo. Outra coisa que me chamou a atenção foi o modo como o pajé nos perguntava com respeito aos efeitos do chá. Ele perguntava se estávamos “tranquilos na força”, referindo-se ao efeito como algo transcendental.

Perto da meia-noite voltamos para nossas acomodações. 

Depois de uma noite tão intensa quanto a que passou, não sabia como seria nosso dia. Ele começou um pouco mais tarde do que os demais, embora tivéssemos acordado cedo como de costume, por volta das 6:30. 

Nosso café da manhã, mais uma vez foi composto de diversas variações de preparo da banana. Banana verde frita, banana madura frita e banana cozida. Teve também mamão e torradas com manteiga.

Depois do café nos preparamos para visitar a samaúma. Esta é uma árvore enorme e pelo que nos contaram o exemplar que visitamos sequer era um dos grandes. A samaúma que íamos visitar ficava do outro lado do rio e utilizamos as embarcações para fazer a travessia.

Samaúma.
Na cultura Yawanawá está é considerada uma árvore sagrada, acreditando que o espírito desta árvore é muito forte. Também há uma lenda que envolve a samaúma e o gavião real. 

A história narra como os gaviões reais estavam atacando as pessoas para dá-las de alimento para os recém nascidos filhos de gavião. A história conta como que os humanos ao derrotarem o gavião real fizeram com que os outros homens que já haviam sido comidos fossem regurgitados e se tornassem, ao cair no solo, em todas as árvores da vegetação conhecida.

Samaúma.
Ainda numa conversa informal, perguntei ao Matsini como surgiu o corte de cabelo na cultura deles. Ele contou que isso começou com a chegada dos homens brancos. Também mancionou como índios vindos do Peru atacaram as tribos locais munidos de espingardas e a maneira que utilizaram para resistir e contra atacar. Calendário, festividades, plantio, tudo isto veio junto com a chegada do homem branco.

Após um bom tempo escutando estas histórias e lendas tínhamos de atravessar o rio de volta. Os índios resolveram voltar a nado. Decidiram isto em cima da hora, foram com as roupas que estavam no corpo e só se deram ao trabalho de deixar algumas coisas nos barcos. Eu não deixei por menos e voltei nadando também, mas eu já estava de sunga, tirei a roupa para não molhar, mandei no barco. A diferença é gritante de como temos cuidados e como eles fazem as coisas sem melindre algum.

Chegando à aldeia almoçamos galinha caipira muito bem preparada e ainda por cima, apimentada. Um dos destaques em termos de refeições. Descansamos depois do almoço e nos preparamos para o que eles chamaram de brincadeiras.

Antes dos jogos as crianças foram pintadas.
Antes dos jogos as crianças foram pintadas.
O açude próximo ao local onde se deram as brincadeiras.
As brincadeiras foram sensacionais! A primeira delas deu-se da seguinte maneira: Alguns pedaços de cana foram cortados em tocos de dois palmos. Inicialmente as mulheres tinham de tirar o toco das mãos dos homens, que os seguravam. As mulheres podiam usar ambas as mãos e mais de uma podia tentar arrancá-lo dos homens que os protegiam, estes com a limitação de utilizar apenas uma das mãos.

Brigando pelo pedaço de cana.
Eu comecei a brincadeira com o braço direito. Resisti bastante e foram necessárias quatro mulheres para tirar o pedaço de cana da minha mão. Já para o braço esquerdo apenas duas foram necessárias. Saí bem cansado desta primeira brincadeira.

Ainda de posse da cana.
Logo em seguida os papeis se inverteram e coube aos homens arrancar das meninas o pedaço de cana. Na sequência a outra brincadeira que fizemos foi o cabo de guerra com um pedaço grande de cana de açúcar. Eu não participei desta.

A outra brincadeira foi uma espécie de bobinho com um mamão. Os grupos sentavam no chão e passavam o mamão de uma pessoa para a outra. Cada grupo tinha de interceptar a troca de mãos. Essa brincadeira descambou numa espécie de futebol americano. Um dos caras do nosso grupo fazia muito bem a proteção e quando a bola ficava dividida, armava-se aquele monte para disputa. O esforço era de tirar as pessoas de cima para alcançar o mamão protegido sempre por alguém. 

As mulheres eram muito fortes, não poupavam esforços e talvez se equiparassem aos homens nas atividades cotidianas da aldeia. Isso fica evidente nas brincadeiras, mas também se reflete por serem elas a plantar e a não se negarem a praticar nenhuma das atividades praticadas pelos homens.

É impossível não lembrar das garotas da cidade, normalmente com mais restrições, a começar pelo mato. O contato diário com a natureza parece que molda todos e os deixam mais tranquilos. E aí vemos que as coisas se resumem ao essencial. Eu valorizo muito o contato com a natureza. Gosto da simplicidade, da transparência, a objetividade. Tudo que é necessário para sobreviver num ambiente não domesticado, mais selvagem.

O prêmio das brincadeiras era ficar com a fruta que era objeto de disputa. Tinha tempo que eu não chupava cana. Como é bom aquele gostinho de açúcar. Não precisamos de muitas coisas para nos divertirmos e sermos felizes.

Depois de encerradas todas as brincadeiras, todos nos postamos em roda e começamos a dançar. Enquanto alguns rodavam, outros iam para o meio da roda dançar, sempre um menino e uma menina. O baile era ritmado pelos cânticos e os pares davam três passos para frente e três passos para trás. Os pares iam trocando, a roda externa sempre em movimento circular.

No final formou-se um trem, caminhamos por toda aquela região da aldeia até terminarmos todos dentro do açude. Foi um dia bem cheio, bem divertido e o final de tarde muito bonito. O dia seguinte seria o último dia. Seria difícil um dia superar este com tantas atividades.

Todos no açude.
Entardecer de dentro do açude.
Entardecer de fora do açude.

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