quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

De Sete Estrelas a Mutum

Dormi muito bem de noite. A noite na selva cai abruptamente e tão radical quanto a mudança de luz é a mudança de sons. Os animais noturnos começam a emitir os sons enquanto que os diurnos cessam. E mais interessante é que por mais intenso que sejam estes barulhos eles não atrapalham o sono. Pelo menos não atrapalharam o meu. Não sei se por cansaço depois de tantas viagens e noites mal dormidas, fato é que dormi incrivelmente bem. 

Como a vida na selva é ditada pela luz natural e ainda, sabendo que eu sou completamente do dia, acho que poucas vezes na minha vida tive tanta disposição. Ia dormir perto de 20:00 sempre e acordava com o alvorecer, em torno de 5:00/5:30.

A satisfação de uma noite bem dormida, mesmo tendo dormido em rede é inigualável.

Mesmo tendo acordado algumas vezes no meio da noite senti-me muito descansado. Nestes momentos despertos eu observei a selva. Observei muito mais com a audição do que com a visão. O breu era completo, foi a sensação mais próxima que tive da total falta de visão. 

Essa é uma constatação incrível, a total ausência de luz faz teu corpo se adaptar e dar muito mais atenção a outros estímulos, como é o caso do som. Todos os barulhos se fazem perceber.

Sapos, insetos diversos, alguns pássaros, cânticos indígenas de fundo. Todo ruído é amplificado e percebido.

No meio da noite escutei um grito, acordei sobressaltado. No dia seguinte vim a saber que uma menina achou que algum animal tivesse colidido ou mexido em sua rede. O vizinho de rede também sentiu algo.

Os índios no dia seguinte constataram que era obra de um espírito da floresta. E eu que achei que tivesse sonhado tive a certeza de que não sonhara.

Outro som que me fez despertar foi a chuva torrencial, esta trouxe uma temperatura agradável, um belo fundo sonoro e tranquilidade.

Acordei bem cedo, antes de seis da manhã, para ser preciso perto de cinco. Outros também estavam despertos neste mesmo horário. Ficamos de papo até que vimos que nosso anfitrião chegava à cozinha comunitária. 

Os índios se puseram a cozinhar. Fiquei sabendo que um dos filhos do Luis se juntou a uma mulher que não é indígena. Ela trouxe os filhos, que pela aparência eram notadamente diferentes dos demais integrantes da aldeia. Mesmo assim pareciam completamente integrados e adaptados. A esposa do filho do Luis era formada em medicina e agora estudava os tratamentos tradicionais indígenas.

Durante o café da manhã fiquei conversando com o Luis e ele me contava como havia tentado ensinar o filho sobre estes conhecimentos. Ed no entanto não mostrava muito interesse e foi só mais tarde que espontaneamente resolveu aprender que Luis pode passar seu conhecimento. O processo de aprendizado ainda estava em curso e além de estudar, o aluno precisa passar por uma dieta específica.

É interessante que para cada atividade que envolva absorção de conhecimento ou introspecção religiosa os índios utilizem uma dieta específica. 

Essa questão de estudar mais velho me mostrou como os tempos ali são diferentes. Eles são pais e casam muito cedo. Durante esta fase dedicam-se a aprender as tarefas que lhes permitam a sobrevivência imediata. Talvez porque ainda gozem de boa saúde não precisam ter conhecimentos mais específicos sobre doenças. Mais tarde, já mais fragilizados e com os filhos maiores e mais independentes, se dedicam a outras tarefas. Mas isto é apenas uma dedução minha, sem o menor rigor científico. 

Nosso café da manhã foi composto de mandioca, mingau de banana, café e banana verde frita. As preparações de banana eram muito gostosas. E também já deu para notar que mandioca e banana é a base da culinária deles.

Depois do café caminhamos pela horta medicinal do seu Luis. Algumas plantas cheiravam muito bem, inclusive uma indicada para curar dor de cabeça tinha o cheiro de refogado de alho, cebola e cebolinha. Eu tenho um livro sobre mágica na culinária. Esta planta se encaixaria perfeitamente em algum dos capítulos.

Alguns integrantes da Aldeia Sete Estrelas nos acompanharam durante a visita à horta.
Uma outra planta que achei interessante foi a que é utilizada para transformar alguém em pajé. O simples tocar a planta é proibido para quem não estiver no processo de preparação, dieta e aprendizado.

Algumas barracas utilizadas para receber visitantes, à direita, dona Luísa.
Após esta volta, que durou boa parte da manhã, fomos arrumar nossas coisas para que estivéssemos prontos antes do almoço. 

Vi a preparação do almoço, que desta vez apresentou uma espécie de farofa de banana, sem farinha, peixes pescados com tarrafa e cozidos na folha de bananeira.

Logo após o almoço fizemos a despedida, agradecemos e fomos para o barco. 

Como havia chovido bastante na madrugada, o rio estava mais cheio o que nos proporcionaria uma viagem mais rápida e confortável.

Trecho do caminho de Sete Estrelas a Mutum.
Chegamos em Mutum, a outra aldeia, e já fomos direcionados para o local onde nos estabeleceríamos. O local era uma cabana elevada com as laterais abertas na altura de onde poderiam posicionar janelas.

Nosso quarto coletivo em Mutum.
Os banheiros contava com vasos sanitário, não de sentar, mas aqueles de agachar, com apoio lateral para os pés. Também havia chuveiro, mas o abastecimento intermitente de água nos obrigou a tomar banho no local mais próximo da moradia dos índios. Para isto tivemos de fazer uma caminhada.

Depois do banho de chuveiro consegui a proeza de pisar na única tábua faltante da ponte. A meu favor digo que a ponte estava submersa. O ponto interessante é que afundei tanto a ponto de ficar com a barriga abaixo do nível d’água. E como o chinelo prendeu no fundo lamacento, tive de enfiar meu braço inteiro dentro d’água. Belo banho.

A noção de limpeza muda nesta situação. No jantar tivemos carne de paca. Um sabor forte demais, talvez cozinhá-la com batatas e durante mais tempo ajudasse a amenizar o sabor muito marcante. A farinha de mandioca ajudou um pouco neste sentido. De sobremesa tivemos banana e laranja. 

Comparando uma aldeia a outra notei que Sete Estrelas seja mais próxima ao que seria sem a influência do homem branco, em comparação a Mutum. Enquanto nesta já há até energia elétrica, naquela tudo era mais rudimentar. A comparação foi ótima porque nos deu uma gradação do que pode ser conforto e do que pode ser rústico.

Os próximos dias nos prometem bastante imersão na cultura. Na hora que escrevo, 19:56 hs, já me preparo para dormir.













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